Justiça de SP estoca 240 mil armas em 678 prédios; a maioria com segurança frágil, junto a outras provas, como fraldas
Reportagem entrou e saiu de local onde armamento é guardado sem ser parada pela segurança; prédios bem equipados são minoria
Um arsenal de cerca de 240 mil armas de fogo, suficiente para equipar quase duas vezes todos os policiais militares e civis de São Paulo (121.913), está armazenado nos 678 fóruns do Estado de maneira precária. Há desde armas de fabricação caseira até fuzis e metralhadoras.
Sem local exclusivo para guardar esse arsenal, juízes são obrigados a misturar as armas com outras provas judiciais, como brinquedos, fraldas e até estocá-las em depósitos improvisados em garagens. Há prédios bens equipados, com salas-cofres e sistema eletrônico de segurança, mas eles são minoria.
A equipe de segurança também é deficiente. Para os 678 prédios, a Justiça tem só 350 vigilantes, mas que não são exclusivos para o armamento. Para minimizar o problema, juízes solicitam o auxílio de policiais militares ou de vigias emprestados por prefeituras.
O perigo do armazenamento precário é o risco de as armas voltarem às mãos de criminosos. Como ocorreu, por exemplo, em abril de 2005, quando 50 armas do fórum de Mauá (ABC paulista) sumiram. Uma delas foi encontrada, mais tarde, na Penitenciária de Araraquara (273 km de SP). Segundo investigações, ia servir para a fuga de Marco Herbas Camacho, o Marcola, considerado o chefe da facção criminosa PCC.
"A segurança não é adequada em nenhum prédio. É uma coisa que a gente evita até comentar para não despertar a sanha de gente que possa tentar eventualmente fazer mal a algum juiz e tudo mais", disse o vice-presidente da Associação Paulista de Magistrados, Paulo Mascaretti, que defende a autonomia financeira do Judiciário paulista para tentar resolver este e outros problemas.
Os recentes roubos de armas, um no Centro de Treinamento Tático de Ribeirão Pires (Grande SP) e o outro no quartel do Exército, em Caçapava (116 km de SP), deixaram juízes ainda mais preocupados. Há magistrados, segundo a reportagem apurou, que optam por fazer boa parte do trabalho em casa.
A Folha visitou um fórum na Grande São Paulo e verificou a fragilidade do prédio. Dois repórteres passaram pelo detector de metal com computador portátil e máquina fotográfica na mochila. O alarme tocou várias vezes, mas não havia ninguém para olhar a bolsa.
Nesse prédio (não identificado por razões de segurança), as armas são guardadas na garagem e um único manobrista faz a "guarda". Os repórteres, sem identificação, ficaram no prédio por 40 minutos e visitaram também a garagem. Ninguém fez qualquer questionamento.
Ilusão de segurança
Uma comissão do Tribunal de Justiça estuda, em sigilo, formas de resolver o problema.
A situação é considerada tão grave que o Ilanud (Instituto Latino-Americano das Nações Unidas para Prevenção do Delito e Tratamento do Delinquente) tornou sigilosa uma pesquisa que pretendia divulgar em 2007 sobre "O Controle de Armas Apreendidas pela Polícia". Os pesquisadores ficaram temerosos em chamar a atenção para a fragilidade do sistema.
"As pessoas pensam que existe um controle muito mais efetivo do que o que há de verdade. Isso nos assustou. Meu dilema era: dizer que não funciona e chamar a atenção, ou deixar todo mundo achando que funciona?", diz a coordenadora da pesquisa, Isabel Figueiredo.
"O Judiciário não é o vilão. É refém. Não está sendo incompetente no jeito de gerenciar. Ele suporta o ônus de um sistema totalmente errado", afirma.
As armas, para a Justiça, são "coisas apreendidas" -como um cartucho de impressora ou uma fralda. Por lei, só podem ser destruídas no final do processo, que dura em média cinco anos. Entre 2004 e 2008, por exemplo, a polícia paulista apreendeu 136.336 armas -ou uma a cada 20 minutos.
Enquanto não percorridas todas as instâncias do Judiciário, a arma fica lá, parada. Há casos, como admitem juízes, em que elas ficam até depois disso. O processo vai para o arquivo, mas a arma fica.
Pesquisador defende centralização das armas em postos específicos
O pesquisador Guaracy Mingardi diz que o problema dos fóruns deveria ser resolvido com a centralização das armas em três ou quatro postos específicos para essa finalidade.
Diretor de Políticas, Programas e Projetos da Secretaria Nacional da Segurança Pública, do Ministério da Justiça, Mingardi defende a viabilização de ações no Judiciário para que esses arsenais possam ser destruídos o quanto antes.
"Não se pode guardar armas apreendidas em fóruns ou delegacias "ad infinitum'", conclui.
Na opinião de Mingardi, falta um sistema eficiente de informação sobre esses arsenais.
"A coisa primordial (...) é ter o controle absoluto de onde está tudo. Porque tem arma que está no fórum X; outra, no fórum Y; algumas antigas estão com a polícia. Precisa haver um cadastramento das armas apreendidas", afirma Mingardi.
Apamagis
O vice-presidente da Apamagis (Associação Paulista de Magistrados), Paulo Dimas de Bellis Mascaretti, reconhece haver insegurança nos fóruns de São Paulo, apesar dos avanços.
"Por não haver recursos orçamentários suficientes, o Tribunal não pode investir adequadamente na segurança dos fóruns. Um sistema de segurança adequado demanda (...) câmeras e outros mecanismos de segurança. Até para contratar vigilância (...) depende de um dispêndio considerável."
Mascaretti afirma que as armas não podem ser destruídas enquanto o processo tramita. "Pode surgir a necessidade de alguma perícia complementar. Mas deve ser preservada em local seguro", diz o vice-presidente da entidade.
(ANDRÉ CARAMANTE E ROGÉRIO PAGNAN)
TJ diz que tenta acelerar destruição de armamentos
Juiz afirma que, para isso, é necessário dar mais celeridade aos processos
"As armas são guardadas em locais seguros e as condições de segurança delas são as possíveis", afirma magistrado
O juiz James Alberto Siano, assessor do presidente do Tribunal de Justiça de São Paulo, desembargador Roberto Antonio Vallim Bellocchi, afirmou que o Judiciário tem como uma de suas principais metas dar mais celeridade aos processos e, com isso, diminuir o tempo de permanência de armas ou outros objetos relacionados a crimes estocados nos fóruns.
"A presidência do Tribunal de Justiça tem todo o interesse em acelerar a conclusão dos processos para que não só essas armas, mas todo o material apreendido possa sair dos fóruns", disse o juiz Siano.
De acordo com Siano, o presidente do TJ não fala sobre armas armazenadas em fóruns por questões de segurança. A reportagem solicita entrevista com ele, assim como com o presidente da comissão de segurança do tribunal, desembargador Regis de Castilho Barbosa, desde 24 de março.
Para acelerar a conclusão dos processos, diz o juiz Siano, o TJ tem adotado uma série de medidas de logística que podem vir a melhorar o sistema de aplicação das leis. "Quanto antes terminamos um processo, mais rápido podemos mandar a arma para o Exército."
Sobre questões específicas de segurança nos fóruns, assim como no caso do que foi visitado pela Folha (onde armas são guardadas na garagem), o juiz Siano disse não ter condições de se manifestar "por questões de segurança". "As armas são guardadas em locais seguros e as condições de segurança delas são as possíveis."
A assessoria de imprensa do TJ enviou uma nota à Folha informando que as armas "permanecem no fórum apenas até o julgamento dos processos e, na sequência, são encaminhadas ao Exército para destruição". Na verdade, uma parte das armas não é destruída porque são armas legais e são devolvidas ao proprietário -como aquelas apreendidas de policiais durante serviço.
"Podemos afirmar que todos os cerca de 44 mil servidores zelam pelo bom funcionamento e atendimento à população do Estado, incluindo aí a segurança", diz a assessoria. (RP E AC)
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