sábado, 7 de março de 2009

A decisão do STF que fez valer a presunção de inocência é benéfica à sociedade brasileira?

SIM

Regras, fantasmas e instituições
RAFAEL MAFEI RABELO QUEIROZ

A DECISÃO do STF no habeas corpus 84.078 -que fez valer a regra constitucional de que não se pode cumprir pena antes de tornar irrecorrível a decisão condenatória- fez surgir debates calorosos.
Alguns argumentam que o STF apenas garantiu a eficácia normativa da Constituição, que expressamente proíbe o cumprimento antecipado da pena; já outros fizeram direta associação entre o respeito a esse direito e os obstáculos por ele criados à realização da justiça, redundando em impunidade. Nesse fogo cruzado, aflora a percepção de que as instituições encarregadas de nos proteger se atrapalham em meio a suas regras e resolvem suas próprias aporias à custa da nossa segurança -todos nós, que não criamos o tal princípio da presunção de inocência e muito menos cometemos crimes. Nessa luta entre sistema de justiça e seus princípios, a visão de muitos é que venceu a impunidade e perdemos todos nós. Nesse conflito seríamos, ironicamente, vítimas de balas perdidas de uma disputa alheia.
Uma vez que impunidade é, antes de uma assombração coletiva, um fenômeno empírico, vale analisar o que representa concretamente a decisão do STF. Tomemos o caso das Justiças estaduais, que são competentes para julgar muitos dos crimes que nos amedrontam (roubos, homicídios, tráfico de entorpecentes etc.): segundo o último relatório do CNJ ("A Justiça em Números, 2008), elas recebem aproximadamente 3 milhões de novos casos por ano, entre cíveis e criminais, desconsiderados os juizados especiais. A taxa de recorribilidade à segunda instância é de aproximadamente 13%: pelo caminho ficam suspensões, desistências, decisões não recorridas e outras coisas. Desses casos que chegam aos tribunais estaduais, apenas 24% apresentam recursos às instâncias superiores. Pois bem, é sobre esse percentual reduzido que recaem os efeitos da decisão do STF. Ajustada a figura inicial, tem-se que, dentre todos os casos que dão entrada nas Justiças estaduais, pouco mais de 3% chegam às instâncias superiores.
Esse número tem ainda dois funis adicionais: ele abrange, em primeiro lugar, tanto processos cíveis (que nada têm a ver com a tal decisão do STF) quanto criminais; e, mais ainda, compreende muitos recursos que não são aceitos por falta de condições técnicas de admissibilidade. Sendo assim, é muito seguro assumir que a decisão do STF potencialmente afetará uma parcela bastante reduzida do total de casos penais iniciados nas Justiças estaduais.
Não bastasse isso, é preciso considerar que, mesmo nesse número relativamente pequeno de ações penais que chegam aos tribunais superiores, continua sendo plenamente possível a prisão do acusado antes do trânsito em julgado da decisão, nos casos previstos no artigo 312 do Código de Processo Penal -que, aliás, são os mesmos que permitem o encarceramento no correr das ações em primeira e em segunda instâncias. A diferença estará em seus fundamentos: o réu não poderá ser preso para cumprimento da pena pela qual ainda não foi definitivamente condenado, mas poderá sê-lo por trazer perigo à ordem pública ou para evitar fuga iminente. Tudo isso quer dizer que não estamos menos vulneráveis aos poucos réus das instâncias superiores do que o estamos em relação aos muitos e muitos das instâncias inferiores.
Talvez haja, portanto, certo exagero na percepção compreensível, mas infundada, de que nossa sociedade tornou-se menos segura e mais impune desde a dita decisão. O raciocínio oposto é mais apropriado: pagaremos um preço baixo pela reafirmação do valor simbólico, mas de efeitos sensíveis, de que todas as regras jurídicas devem ser respeitadas por todos nós -pelos acusados, mas também pelos responsáveis por sua acusação, processo e julgamento. E as sociedades que escolhem fortalecer suas instituições dificilmente saem perdendo, ainda que esse processo traga em si o desconforto de termos de enfrentar nossos próprios fantasmas.

RAFAEL MAFEI RABELO QUEIROZ, 30, advogado, é doutorando em direito pela USP e professor da Escola de Direito de São Paulo da Fundação Getulio Vargas (Direito GV) e da Universidade São Judas Tadeu.

NÃO

O STF e a presunção da inocência
ANDRÉ LUÍS WOLOSZYN

A MAIS recente orientação do Supremo Tribunal Federal promete causar grandes repercussões no quadro da segurança pública brasileira. O fato de que presos do regime fechado, condenados por roubo, estupro e estelionato, entre outros, podem aguardar em liberdade a exaustão dos recursos processuais, com base nos princípios constitucionais da presunção da inocência e da ampla defesa, poderá desencadear a maior onda de habeas corpus da história jurídica brasileira, beneficiando metade da população carcerária no Brasil, de cerca de 500 mil pessoas.
Como o tema é polêmico, a partir dessa orientação surgiram diversas correntes filosóficas para discutir a questão e dividir opiniões. Inobstante esse princípio ser considerado a maior garantia para os cidadãos em um Estado democrático de Direito, o que não se discute, uma corrente considera a orientação um incentivo à criminalidade ao gerar sensação de impunidade, contribuir para o enfraquecimento das autoridades judiciária e policial, dificultar as ações de combate ao crime e, além disso, aumentar consideravelmente a carga de trabalho do Judiciário.
Outra corrente acredita que serão beneficiados apenas réus condenados por crimes de colarinho branco e integrantes do crime organizado, pois, com a profusão de recursos disponíveis e a quantidade de processos a serem julgados, alguns desses crimes decerto prescreverão, deixando impunes seus autores. Em suma, "bandido rico não vai para a cadeia". Há ainda os que consideram a decisão um equivoco do STF pois o mérito do fato imputado ao acusado é decidido na primeira e na segunda instâncias do Judiciário. Já as decisões do Supremo, em recurso extraordinário, não analisam mérito, mas apenas se houve vício procedimental que possa anular o processo por contrariar dispositivo constitucional.
Nessa mesma linha, existem outros exemplos de decisão. Uma dessas foi a promulgação da lei que modifica dispositivos da Lei de Crimes Hediondos, sob o argumento de que deveria ser dada nova esperança aos réus que nela são enquadrados e julgados, no sentido de proporcionar "maior oportunidade para sua ressocialização". O resultado foi que as penas para crimes hediondos, como homicídio praticado por grupos de extermínio, latrocínio, extorsão mediante sequestro e morte, estupro e corrupção, entre outros, podem ser cumpridas inicialmente em regime fechado, permitindo também a progressão de regime -o que era vedado anteriormente.
Outra decisão foi a edição da súmula vinculante nº 11, a qual determina que seja justificado por escrito, pela autoridade policial, o uso de algemas, sob pena de responsabilidades disciplinar, civil e penal e nulidade da prisão ou até do ato processual. Essas querelas jurídicas até poderiam ter um impacto positivo caso não existissem 550 mil mandados de prisão a serem cumpridos, 1,5 milhão de foragidos da Justiça, caos no sistema penitenciário -o que torna impossível o processo de ressocialização-, defasagem material e em efetivos policiais e sobrecarga no sistema judiciário. Não se pode ignorar que a sociedade vem sofrendo consequências diretas desse quadro. Isso é demonstrado por recentes pesquisas de opinião que apontam que 89% dos brasileiros acreditam que a segurança é hoje o principal problema do país e que 81,5% dos entrevistados defendem a maioridade penal aos 16 anos, entre outras questões.
O principio da presunção de inocência é uma garantia que deve ser respeitada, pois é legítimo e necessário. Todavia, seu embasamento deve ser precedido de uma avaliação de maior profundidade, como a análise do contexto social. É nesse contexto que a decisão do STF, a exemplo de outras do gênero, não atende aos anseios da sociedade brasileira e poderá contribuir para uma maior sensação de insegurança nas comunidades.
De que adianta o Brasil ser considerado pioneiro na defesa dos direitos de criminosos -na vanguarda dos países onde "não existe tamanha proteção aos réus", afirmação feita como alerta por um dos ministros do STF, se convivemos com índices alarmantes de violência e criminalidade?

ANDRÉ LUÍS WOLOSZYN, 44, analista de inteligência estratégica pela Escola Superior de Guerra, é especialista em ciências penais, criminologia e terrorismo (EUA).

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