HENRIQUE NELSON CALANDRA
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Nossa Constituição garante o acesso de todos ao Judiciário, mas não cria condições para a correta aplicação jurisdicional
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O EDITORIAL desta Folha do dia 7 de abril trouxe análise de sondagem nacional realizada por importante instituto e que apontou algumas considerações sobre a Justiça.
O texto se dividiu em dois trechos absolutamente distintos. Na primeira parte, mostrou vários avanços obtidos. Porém, na segunda parte, o editorial apresentou dados contraditórios. Afirmou que a maioria da população vê o Judiciário como "lento", "caro", "enviesado" e "influenciável".
Vaticinou que não poderia ocorrer de outra forma, afinal, "num país em que assassinos podem aguardar em liberdade uma década ou mais até ver sua condenação transitar em julgado, a Justiça ainda tarda e falha no básico, impedir a impunidade".
A análise prosseguiu com conclusões como: "A população parece demandar menos processos arrastados e mais conciliação, com o pragmatismo que muitas vezes falta a juízes". Ou ainda: "Uma contribuição seria reduzir para 30 os 60 dias anuais de férias dos magistrados (aos quais se somam 15 de recesso)". Finalmente, conclamou o presidente do STF, ministro Gilmar Mendes, a eliminar esse "privilégio".
Cumpre -no papel de presidente da maior entidade estadual de magistrados das Américas, a Apamagis (Associação Paulista de Magistrados)- apresentar alguns dados e argumentos para reparar graves equívocos que o artigo comete e que induzem os leitores a conclusões erradas.
Em primeiro lugar, não há como comparar coisas absolutamente distintas, ou seja, ações trabalhistas e de pequenas causas com ações na órbita do direito penal. Não se trata de gradação de importância, mas os bens jurídicos tutelados pela Justiça criminal -vida, patrimônio, liberdade e outros- exigem formas diferenciadas de aplicação jurisdicional.
Transportar realidade de um campo do Direito para outro é equívoco gravíssimo, apto a ameaçar garantias elementares. Não há a imaginada relação de causa e efeito apontada pelo editorial para que "assassinos" aguardem em liberdade "uma década ou mais". Ao contrário, aumentar a carga de trabalho e submeter magistrados a uma rotina ainda mais dura trará, indubitavelmente, um efeito inverso do imaginado.
A despeito de estudos conduzidos por instituições sérias, como o Banco Mundial, apontarem que a produtividade do magistrado brasileiro é uma das mais elevadas do mundo, é possível aumentar a eficiência do sistema jurídico nacional.
Digno de registro: a magistratura é uma das mais restritivas carreiras do Estado. Ao magistrado é vedado exercer qualquer outra atividade, exceto a de ministrar aulas. Não há outras vantagens trabalhistas, como horas extras e adicional de periculosidade.
É incomum o juiz ou desembargador que não leva trabalho para casa ou que não trabalha todos os finais de semana. Ainda mais raros são os magistrados que não se valem do "privilégio" das "férias" para diminuir o enorme acervo de processos.
O juiz criminal se defronta com perigosos criminosos e, em muitas oportunidades, vê a segurança própria ou de familiares ameaçada. Ainda assim, distribui justiça gratuita, quando necessário, e não sofre influência de ninguém, de nenhuma esfera de poder. Tudo graças a garantias constitucionais duramente alcançadas e que são defendidas com veemência pela Apamagis.
Assim, o ponto central de todas as mazelas do Judiciário nem sequer foi citado: a falta crônica de recursos. Faltam juízes, funcionários, estrutura, informatização, treinamento de pessoal e tantas outras demandas extremamente prementes.
Temos uma Constituição que garante, de maneira gratuita até, o acesso de todos ao Judiciário, mas que não cria condições mínimas para a correta aplicação jurisdicional.
O debate sobre formas de melhorar a eficiência do Judiciário é tema muito bem aceito nas fileiras da magistratura. O que não se aceita, porém, é a utilização de premissas equivocadas que, inexoravelmente, levam a conclusões desastradas.
A percepção negativa da população sobre alguns temas seguramente decorre da desinformação e do desconhecimento -o qual o editorial deste prestigiado e respeitado jornal não ajuda a reverter.
Realmente, é preciso construir, todos os dias, "uma nova Justiça", e isso todos os profissionais da área concordam. É imperioso, porém, descobrir as causas dos problemas e, ainda mais importante, buscar soluções verdadeiras e efetivas.
HENRIQUE NELSON CALANDRA é desembargador do Tribunal de Justiça de São Paulo e presidente da Apamagis (Associação Paulista de Magistrados).
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