Brasil: uma guerra urbana
Redação Terra Magazine
O mito de país pacífico se confronta com as ruas, os medos, o cotidiano dos brasileiros. Uma constatação atravessa as diferentes bases de dados oficiais: o número de homicídios expõe uma guerra urbana invisível, quando muito exibida em sua face minúscula em sites, revistas, rádios, televisões e jornais. A cordialidade aparente do Brasil e das suas metrópoles não subsiste aos números da violência. Uma guerra por década. Uma só guerra por décadas.
Terra Magazine, a partir desta segunda, 15 de junho, contará as vidas esquecidas de dez brasileiros que não tiveram a chance de concluir desejos ínfimos. O extraordinário cotidiano de homens e mulheres comuns. Histórias finalizadas pela violência, quase sempre banal e mal revelada.
Estimativas sobre a base de dados do Ministério da Saúde - a partir dos atestados de óbitos - permitem afirmar que mais de um milhão de brasileiros foram assassinados desde 1979 no País. Em tempo: nos 11 anos da guerra encerrada em 1975, os EUA e seus aliados perderam 54 mil soldados - entre as estimadas 1 milhão a 1,5 milhão de vítimas no Vietnã.
Em três décadas de sua guerra nas ruas, o Brasil perdeu um milhão de homens e mulheres, quase sempre jovens. Para perder algo como 2 milhões de vidas em Angola, matou-se por quase quatro décadas, 38 anos, numa das mais ferozes guerras que o mundo já viu.
No Brasil, em 2007 e 2008, a média anual de homicídios girou em torno de 47 mil. De 1996 a 2006, ocorreram 505.945 mil assassinatos. Só em 2006, mais de 49 mil casos.
Outra radiografia, desta vez do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), com uma metodologia diferente: dados da "Síntese de Indicadores do Sociais", de 2004, apontam 598.367 assassinatos entre 1980 e 2000. No mesmo período, o Brasil registrou mais de 2 milhões de mortes por causas externas e, a maioria delas, 82%, foram de homens.
Se nos anos 80 os acidentes de trânsito eram a principal causa externa dos óbitos masculinos, na década de 90, os homicídios assumiram a liderança. Mudou o perfil da mortalidade no país. Em vinte anos, o índice de mortalidade por homicídio cresceu 130%.
Em 2004, a partir da política de desarmamento nacional e da adoção de políticas públicas, os números começam a ser freados. As estatísticas dos homicídios caíram para 48.374, a primeira queda no ritmo de crescimento desde 1990.
Vale lembrar que, desde então, a proibição de porte de armas de fogo sem registro oficial passou a vigorar no Brasil. Em 2005, 59% dos brasileiros, em referendo, apoiaram o comércio de armas de fogo e munição no Brasil.
Outras medidas, como a restrição do horário de funcionamento de bares, a criação de equipamentos sociais e a capacitação das polícias estaduais - apesar dos excessos ainda registrados - também influenciaram na redução.
A tendência de queda nos homicídios continuou em 2005 e 2006 em todo o país - 47.578 e 46.660, respectivamente. A redução não foi suficiente para retirar o Brasil do grupo de países que estão acima da média mundial de assassinatos.
De acordo com o último relatório do Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas sobre Execuções Arbitrárias, Sumárias ou Extrajudiciais, divulgado em 2008, o Brasil tem mais do que o dobro da taxa média de homicídios no mundo.
O país chega a 25 homicídios por 100 mil habitantes - dados referentes a 2006 - contra a média de 8,8 no mundo - dados de 2000, o último cálculo oficial da Organização Muncial de Saúde. A comparação não leva em conta as mortes em guerras.
Em 2006, a cidade de São Paulo ainda mantinha em números absolutos a liderança por mortes violentas, seguida pelo Rio de Janeiro. Recife, porém, era a capital com o maior índice de violência proporcional - 90,5 homicídios por 100 mil habitantes.
Agora, logo no início de 2009, São Paulo comemora: pelo nono ano consecutivo, o número de assassinatos caiu. Em 2008, 66% assassinatos a menos em São Paulo.
Em 2007, o bairro de Alto de Pinheiros, classes A e B de São Paulo, registrou 301 assassinatos. Mesmo ano, mesma cidade, outra realidade: 1.408 pessoas foram mortas em Brasilândia, na periferia paulistana. Com 3 mil assassinatos em 2008, Recife segue sem políticas públicas eficientes; foi chamada de "capital brasileira dos assassinatos" pelo jornal britânico The Independent.
Com as pequenas biografias de desejos e viagens comuns, Terra Magazine mostrará as faces ignoradas da violência. Por questão de logística, vai se ater a casos ocorridos na Grande São Paulo, mas que simbolizam parcelas mais amplas do Brasil. De Recife a Porto Alegre, as estatísticas embutem um País ainda não compreendido.
O guarda civil metropolitano Davi Damião dos Santos, 40, morto por um colega no dia 2 de maio
Terra Magazine publica ao longo desta semana a série "Brasil: guerra urbana" para mostrar as faces ignoradas da violência. Em 30 anos, foram mais de 1 milhão de homicídios registrados. As reportagens contarão as vidas esquecidas de dez brasileiros que não tiveram a chance de concluir desejos ínfimos. O extraordinário cotidiano de homens e mulheres comuns. Nesta segunda-feira, 29, publicamos a oitava história. A de Davi Damião.
1988. Davi, 19, imigrante nordestino na loteria urbana de São Paulo. Partiu de Sertânia, no agreste pernambucano.
2009. Davi, 40, guarda civil na capital paulista. Morto por um colega de trabalho numa base do bairro de Cidade Tiradentes, extremo leste de São Paulo.
Na infinidade de laços de parentesco, era filho de Josefa e Argemiro, irmão da Elisabete, da Arlete, do João, da Adriana e da Eliane. Marido da Irene, pai da Bruna e da Letícia. Padrasto do William. Gordinho chorão, meio dengoso, Davi Damião dos Santos era o mais chegado ao pai, veterinário em Sertânia.
Gramou uma infância modesta em Pernambuco, mas não pertence à leva de retirantes atingidos pela seca. Uma criança tranquila "até demais", nas palavras da irmã Arlete. Os pais nunca precisaram recorrer a métodos mais duros para educá-lo.
Gostava de jogar bola na rua e não perdia um episódio da antiga versão do Sítio do Pica-Pau Amarelo. O ato de assistir TV requeria, porém, um preparo especial na casa dos Santos. Como ainda eram pequenos, Davi e a irmã não conseguiam alcançar o botão que ligava o aparelho, instalado no alto da parede; para isso, tinham de contar com os préstimos do irmão mais velho, assim que este voltava do trabalho.
Na escola, embora não tenha se destacado, esteve longe de passar por último da classe. Fora da sala de aula, o maior susto ficou sendo um supercílio rasgado durante uma brincadeira de "lutinha" nas dependências do colégio. Cumpriu a obrigação de se formar sem repetir de ano.
Mal superou a fase imberbe, e veio o primeiro casamento. Não lhe apetecia a idéia de que a sua donzela fosse mal-vista na cidade. O matrimônio não durou mais que um ano. Hora de migrar.
Sem dar pelota para a inflação, rumou para São Paulo. Ajeitou-se como servente de pedreiro. A metrópole o recepcionou com passagens incômodas por alojamentos de madeirite. Damião trouxe seus quase 1,90m para uma obra no bairro da Vila Prudente. Em seguida, alugou um quarto e cozinha em Itaquera. Sem mobílias, sofá, coisas básicas.
Morava com duas irmãs; Davi e Arlete dormiam grudados em Bete, a mais velha, para esquecer o frio das noites de julho. Mandava dinheiro para ajudar a mãe, abalada pela morte recente de Argemiro, o pai. Pouco depois, dona Josefa mudou-se com as filhas mais novas para o interior de São Paulo, onde tratou um câncer.
Vendo de longe o drama da mãe, restou a Davi manter a serenidade no trabalho. Conseguiu um emprego na Philips, em Guarulhos, onde conheceu a tia da futura esposa, Irene. Casaram-se em 1992. Do enlace, duas meninas.
Em meados da década de 1990, prestou concurso público para a Guarda Civil Metropolitana (GCM). A essa altura, já morava com a família em uma casa construída em Cidade Tiradentes. Passou, "com a graça do Senhor"; evangélico, frequentava a igreja Brasil para Cristo - influência da mulher, e até se batizou.
Às vezes sentia-se desconfortável com a profissão. De início, viu uma idosa, dona de um barraco, passar mal durante a reintegração de posse levada adiante pela GCM. Ao chegar em casa, confessou à mãe, aos prantos:
- Essa profissão não é para mim.
"Tinha o coração de manteiga", conta Arlete. Não tardou, no entanto, para que Davi passasse a gostar do ofício. Certa feita, sofreu uma reprimenda por não ter punido um subordinado. Para complementar a renda, foi segurança de bingos nos Jardins, lojas no Itaim Bibi, supermercados na periferia...
Os ponteiros correram; com o movimento deles, as conquistas. O apartamento próprio, na Cohab II, veio em 2006. De volta a Itaquera, iniciou a reforma do antigo sobrado em Cidade Tiradentes; o imóvel ficou para o enteado, então recém-iniciado nas artes da paternidade.
NÃO TENHO PALAVRAS PRÁ EXPRESSAR O QUANTO O DAVI FEZ A DIFERENÇA EM NOSSAS VIDAS. SEMPRE QUE PODIA VINHA A NOSSA CASA.FOI NOSSO PADRINHO DE CASAMENTO E SOMOS MUITO LISONJEADOS POR ISSO.A SAUDADE É IMENSA.
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